... A região do Estácio, morada de artífices, operários e biscateiros, vizinho de São Carlos, era um ponto natural de encontro. Convergência de malandros, alguns deles excelentes sambistas, e tem uma história importante no samba. Os botequins do Estácio, sobretudo os do Compadre e Apolo, eram freqüentados pelos bambas que fundaram a primeira escola de samba.
... Em 12 de agosto de 1928 surge a primeira das escolas de samba, a Deixa Falar, no bairro do Estácio de Sá.
... O nome "escola" foi escolhido por Ismael, fazendo analogia com a Escola Normal do largo do Estácio. A nova agremiação carnavalesca formaria “professores” de samba.
... Ismael Silva estaria agora fazendo 101 anos. Ele nasceu em Jurujuba, no comecinho do século passado. Mas é filho legítimo do Estácio de Sá, bairro onde nasceu, em 1928, a primeira escola de samba. O Estácio, onde Ismael Silva chegou aos três anos de idade no colo da mãe, já era reduto da malandragem, da cultura negra e do samba carioca. Estava pertinho da Praça Onze; portanto, perto de Tia Ciata, de Donga, de João da Baiana, de Sinhô e de tantos bambas. Segundo o dramaturgo Hersch W. Basbaum, o Estácio nunca existiu. “O que existiu foi um bairro parecido com o Estácio e que, por acaso, chamava-se Estácio”.
... A Deixa Falar surgiu para que os sambistas pudessem desfilar da mesma forma que os integrantes dos ranchos carnavalescos, sem repressão policial. A repressão atingia os sambistas em geral, devido ao fato do samba na época ser bastante cantado após os cultos de candomblé, que era alvo da polícia. A perseguição vai sendo reduzida com o fim da criminalização das religiões afro-brasileiras.
... A Deixa Falar desfilou pela primeira vez no ano seguinte, cantando na Praça Onze os sambas do pessoal do Estácio. Nessa época, como o samba carioca guardava ainda semelhanças com o maxixe, esse grupo de sambistas foi o responsável pela criação e fixação de um novo tipo de samba, cuja batida marcada por instrumentos de percussão era mais apropriada para os desfiles das escolas que surgiam.
... Ismael Silva em depoimento ao jornalista Sérgio Cabral, disse que a alteração rítmica era necessária porque "a gente precisava de um samba para movimentar os braços para a frente e para trás durante o desfile". Assim, materializando a intenção dessa geração, agregada por volta de 1927 em torno do bairro do Estácio, entra em cena o samba batucado da Deixa Falar, considerada a primeira escola de samba responsável por desvilcular o samba do maxixe, para adequá-lo à progressão dos préstitos, propiciando um andamento mais leve.
... O samba chega a Oswaldo Cruz através das festas religiosas na casa de "seu" Napoleão José do Nascimento, pai do lendário Natal, que contava com a presença de Dona Benedita, velha senhora que vinha do Estácio acompanhada de Brancura, Baiaco, Ismael Silva e outros bambas que estavam desenvolvendo este ritmo no morro de São Carlos. Através deste intercâmbio, o samba chega finalmente à "roça". Assim, Oswaldo Cruz se torna um importante reduto do novo ritmo carioca.
... Foi no samba do Estácio, e por conseqüência na Deixa Falar, que Bide criou o surdo, para facilitar a idéia de cortejo que já habitava a mente daqueles pioneiros do Estácio e abrir novas perspectivas para compositores e executantes do ainda novo ritmo.
... E o mesmo Bide que inventou o surdo criaria também o tamborim, responsável pelos principais detalhes rítmicos entre a primeira e a segunda do surdo.
... Segundo o próprio Cartola, a Mangueira não tinha surdo. Quem tinha surdo era o pessoal do Estácio. "Aí, Sílvio Caldas trouxe um surdo à Mangueira".
... Ainda na mesma entrevista, Cartola afirma que: "A amizade com o pessoal do Estácio era intensa. O Estácio era escola mais velha, não devemos discutir isso. Tínhamos, assim, um certo respeito pelo Estácio. A gente desfilava nos domingos de carnaval na Praça Onze e, às segundas-feiras, o pessoal do Estácio vinha para o morro. Na Terça-feira, a Mangueira ia ao Estácio. Mesmo fora do carnaval, o pessoal do Estácio vinha para o morro cantar samba em qualquer dia da semana. Tínhamos respeito a eles como os mestres do samba. Houve até uma vez que fiz um samba em homenagem ao pessoal do Estácio que visitava a Mangueira".
E que a letra desse samba é:
Velho Estácio (Cartola) Muito velho, pobre velho,Vem subindo a ladeiraCom a bengala na mãoÉ o velho, velho EstácioVem visitar a MangueiraE trazer recordaçãoProfessor chegaste a tempoPra dizer neste momentoComo podemos vencerMe sinto mais animadoA Mangueira a seus cuidadosVai à cidade descer.
... O samba encontraria sua forma mais autenticamente popular e carioca no estilo dos compositores do Estácio. Este samba desceu o morro com Ismael.
... O surgimento da Deixa Falar coincidiu com a implantação da gravação elétrica no Brasil, responsável pelo impulso ao mercado do disco.
... No alvorecer da década de ouro do rádio, cantores como Mário Reis e Francisco Alves -o grande nome do rádio brasileiro nos anos 30- garimpavam seu repertório de sambas no Estácio. “Descobriram depois que muitas músicas de autoria do Francisco Alves tinham sido compradas do Ismael Silva”, garante Maria Thereza Melo Soares, de 80 anos, autora do livro São Ismael do Estácio.
... Este novo estilo de samba logo despertou o interesse da indústria musical e chegou aos ouvidos de jovens brancos de classe média. Noel Rosa é o maior exemplo disso. Branco, universitário e de classe média, ele passa a compor suas músicas influenciado pelos sambas batucados no melhor estilo do bairro do Estácio.
... Com a explosão da era do rádio a partir dos anos 30, o samba do Estácio ganha enorme difusão através de cantores como Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas, Mário Reis, Carmen Miranda - que consegue projetá-lo internacionalmente a partir do cinema - e mais adiante Dalva de Oliveira, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, entre outros.
... Chico Buarque tem na condição de mestre o grande Ismael Silva - como disse certa vez Lúcio Rangel, corrigindo Mário de Andrade, que o citara simplesmente por nome e sobrenome, sem a reverência que se impunha - pode ser considerado, à frente dos bambas de sua convivência no Estácio, o estruturador do samba, na forma pós-maxixe em que se converteu no ritmo da pulsação nacional.