Minha carta de alforria/ Não meu deu fazendas/ /Nem dinheiro no banco/ Nem bigodes retorcidos ¨ . (Negro Forro, poema de Adão Ventura )
"No futuro, quando se fizer uma história do Brasil honesta e sincera, é que se poderá dar o valor devido à etnia negra na formação do povo brasileiro, principalmente na constituição de seu perfil cultural, afetivo, psicológico e sociológico. Obrigatoriamente, ter-se-á que reconhecer, sem dúvida, que o bom caráter do nosso povo, principalmente em relação às qualidades de generosidade e tolerância, foi abundantemente regado com o sangue e o suor do negro brasileiro, que arrancado de sua pátria, de modo selvagem e violento, e conhecendo em terras brasileiras toda a sorte de violência e humilhação , soube mercê de seu caráter elevado, perdoar a vilania do branco colonizador, dando , em paga da chibata e do tronco, o seio da mãe preta , para fornecer seiva de vida aos filhos dos senhores de engenho , e o braço forte do negro para trabalhar nas fazendas de café, açucar e algodão. Ainda está por ser feito o inventário da contribuição do negro na formação do povo brasileiro. Muitos nomes de negros valorosos haverão que ser lembrados, na constituição dos vários segmentos da cultura brasileira. Dentre estes ninguém poderá olvidar o nome de uma valorosa mulher negra da maior envergadura que muito contribuiu para as origens de uma das nossas mais ricas formas de manifestação cultural, que é a música brasileira. Estamos nos referindo a tia Ciata, de nome Hilária Batista de Almeida, figura de proa da comunidade negra que aparece em todos os relatos que dão conta do surgimento do samba carioca e dos ranchos, cuja lembrança permaneceu cultivada sempre com muito carinho pelo coração dos negros antigos da cidade do Rio de Janeiro. Tia Ciata, viu a luz do mundo em Salvador, no ano de 1854, e porque era dia de Santo Hilário, recebeu o nome em homenagem ao santo. Na sua cidade Natal bem cedo tomou contato com a cultura ancestral da sua raça e bem nova foi feita no santo. Com apenas 22 anos, em 1876, chegou ao Rio de Janeiro, indo morar na rua General Câmara, e mais tarde mudando-se para as vizinhanças de um grande representante da colônia baiana no Rio, Miguel Pequeno, marido de D. Amélia do Kitundi, na rua da Alfândega, n. 304. Sobre seu verdadeiro nome instalou-se controvérsia , constando no atestado de óbito Hilária Pereira de Almeida, e numa petição de pedido de ingresso no clube Municipal, declinando-se o nome como sendo Hilária Pereira Ernesto da Silva. Mas, não resta dúvida que oficialmente , inclusive fato testemunhado pelos seus descendentes e que figura nos livros que fazem referência à sua pessoa, está consignado que se chamava Hilária Batista de Almeida. Fincando vida no rio de Janeiro, ainda nova começou a namorar com Norberto da Rocha Guimarães, também, baiano, de cuja relação nasceria sua primeira filha Isabel, numa fase de vida de que começava a oferecer as primeiras experiências de vida adulta a esta mulher corajosa que mais tarde se celebrizaria na colônia baiana do Rio de Janeiro, mercê de seu espírito forte a que se aliavam uma grande sabedoria religiosa e grandes conhecimentos de culinária. Por exímia conhecedora da excelente culinária baiana, onde foi formada e sendo doceira de excelente qualidade, começou a trabalhar na rua da Carioca, envergando sempre suas roupas de baiana preceituosa , que nunca mais abandonaria depois de certa idade. Apesar do nascimento da filha Isabel, Norberto nunca viveria junto desta e da mãe, ficando ao largo dos grandes momentos de Ciata no Rio de Janeiro, que teria papel central na formação da pequena África no Rio de Janeiro, para onde afluiam os negros em busca de orientação, de proteção, de ajuda financeira. Mais tarde Hilária foi viver com João Batista da Silva, também baiano, que detinha boa condição de vida, estabelecendo com ele uma relação duradoura, que foi muito importante para sua afirmação no meio negro. João Batista havia chegado a freqüentar curso de Medicina na Bahia, interrompido por razões que se não conhecem, mas presumivelmente por dificuldade de enfrentar o enorme preconceito de que era alvo por ser negro. Abandonando a Faculdade, João Batista conseguiu vencer as dificuldades com tranqüilidade, ao conseguir, mercê de seu preparo intelectual, se manter em empregos estáveis, como linotipista no Jornal do Comércio e mais tarde conseguindo um dos desejados cargos de funcionário público na Alfândega. Um descendente seu , o sambista Buci Moreira , conta que foi graças ao trabalho de curadora de Ciata, que João Batista conseguiu um posto privilegiado de baixo escalão no gabinete do Chefe de Polícia, oferecido pelo Presidente Wenceslau Brás, em preito de gratidão e reconhecimento pela recuperação de sua saúde que andava abalada e muito o fazia sofrer em razão de um equizema, que até então nenhum médico conseguira dar jeito, e do qual foi por Ciata , com ajuda de seu orixá, completamente curado. Com João Batista teve uma prole numerosa de 15 filhos, entre os quais Glicéria, casada com Guilherme, também baiano que fez parte da Guarda Nacional( pais de Buci Moreira). Mulher de grande vitalidade e energia, Ciata fez de sua vida um trabalho constante, tornando-se com outras tias de sua geração a iniciadora da tradição carioca das baianas quituteiras, atividade que está baseada em forte fundamento religioso, e que foi recebida de bom grado pelos cariocas. A presença de Ciata era tão importante que sua figura foi registrada por Debret no seu famoso livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil. Após o cumprimento das tarefas religiosas, sendo os doces colocados no altar de acordo com o Orixá homenageado no dia, Ciata ia para seus pontos de venda, com saia rodada, pano da costa e turbante, ornamentada com seus fios de contas e pulseiras. Levava sempre tabuleiro farto de bolos e manjares, cocadas e puxas, os nexos místicos determinando as cores e a qualidade; por exemplo, na sexta feira, dia de Oxalá, era também dia de cocadas e manjares brancos. Ciata havia sido iniciada no santo por Bambochê, sendo legítimo imaginar que era ligada com o tronco mais tradicional do candomblé nagô baiano. No Rio de Janeiro Ciata desenvolvia suas atividades religiosas na casa de João Alabá, sendo a primeira, Iya Kekerê, Mãe Pequena, que atendia pelas obrigações das feitas no santo, pelas oferendas propiciatórias atribuídas a cada um à medida que avançasse no culto. Como Ebami, mais de sete anos de feita, era a Achogum da casa, a mão-de –faca, ligada ao sacrifício dos animais. A Mãe –Pequena, auxiliar direta do pai ou mãe–de-santo que lidera o candomblé no contato com as noviças a que prescreve os banhos rituais e dirige as iaôs, já iniciadas , nas danças dos orixás. A Iya Kekerê tanto usa o adjá, um instrumento próximo da sineta, que marca situações cerimoniais, como propicia ou mantém o transe dos cavalos possuídos por Orixas. É sua força e ascendência no santo que seria o centro da presença de Hilária junto à comunidade, um peso de lider que se fortalece tanto na organização das jornadas de trabalho, como na preparação dos ranchos, embora ela nunca saísse neles. Ciata de Oxum, Orixá que expressa a própria essência da mulher, patrona da sensualidade e da gravidez, protetora das crianças que ainda não falam, deusa das águas doces, da beleza e da riqueza. Ciata era festeira, dançarina, pagodeira, partideira , cantava com autoridade respondendo o refrão. Ciata sempre cuidando das panelas nas festas para que o samba nunca morresse. Hilária perde o marido em 1910, mas percebendo a sua importância para o grupo do qual era verdadeira lider, não se abateu continuando seu trabalho de agregação e ajuda aos negros . É na sua casa , nas grandes festas que o povo mais humilde, principalmente os negros , da Bahia e do Rio de Janeiro, vive seus momentos de alegria, de convivência fraterna e solidária, onde se retemperam as forças para o enfrentamento da dura realidade do dia a dia, na luta contra a pobreza, a adversidade, o preconceito. É aqui, nesse amalgama de gente simples e do provo, que vai se formar o caldo cultural que permite o nascimento de uma das nossas maiores riquezas : a música popular brasileira. É na casa de tia Ciata, alimentados pela boa comida e o alto astral proporcionado pelo generoso coração desta grande negra, que Pixinguinha, Donga, João da Baiana, Heitor dos Prazeres, se reúnem para traçar a pauta do nosso rico futuro musical . No carnaval Tia Ciata também presente com a família, saindo no Rosa de Ouro e no seu sujo O Macaco é Outro. A casa de Tia Hilária se tornaria um dos principais do itinerário dos cortejos, com todos os ranchos passando em frente de sua janela para lhe prestar homenagem."
Artigo retirado do excelente site
Brasil Cultura, sobre uma das maiores personalidades do samba carioca. Vale a pena conferir